Mexendo com Negas, Tapuias e Mascarados na Serra

Introdução

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Michel Dal Col Costa

Educador e Historiador

Muitos que cresceram no Centro da cidade da Serra tiveram suas infâncias marcadas pelas antigas brincadeiras populares de carnaval, conhecidas como ‘entrudos’. Esses eventos dão início ao período carnavalesco e são tradições populares que passam de geração em geração por meio das relações coletivas e familiares, profundamente enraizadas no cotidiano da região.

Este artigo irá compartilhar um pouco sobre essas figuras carnavalescas tradicionais da antiga povoação da Serra-Centro. Estamos falando dos “Mascarados”, os “Tapuias” e as “Negas”. Estas últimas, ainda ocorrem com mais força geralmente no mês de janeiro e início de fevereiro. Os tapuias ainda ocorrem, com mais raridade, e os mascarados há muito não se vê esse costume sendo colocado em prática na região.

Foto feita de paineis na EEEFM João Loyola – Serra-Centro, ES. Este é o antigo prédio que sediou a EEEFM João Loyola desde seu início. Perceba que o artista usou em sua arte a mesma marca de mãos para compor seu painel.

Os Mascarados

Uma das figuras mais emblemáticas do carnaval são os mascarados. Eles se destacam ao vestir roupas velhas e coloridas de forma original e diversificada, sempre com o objetivo de não serem reconhecidos. Cada mascarado possui uma aparência única, até mesmo os trejeitos corporais e o modo de andar são alterados. Quando as crianças e os moradores dos bairros os avistam, imediatamente sorriem e gritam pelas ruas. No entanto, sempre permanecem próximos a um portão ou outro local onde possam se esconder, evitando assim ser ‘pegos’.

“Mascarado, pé de pato, comedor de carrapato!” 

Essa era uma forma de brincar e interagir com os mascarados, que, muitas vezes, carregavam uma varinha ou cajado para acertar aqueles que mexessem com eles, realizando uma espécie de provocação ou insulto. Em termos atuais, seria semelhante a uma forma de ‘bullying’ ao passarem pelas ruas. No entanto, alguns mascarados não carregavam essa vara, que funcionava como uma arma de proteção e resposta à provocação, e tinham apenas a intenção de brincar e divertir os munícipes de forma lúdica. Em essência, o mascarado era como um palhaço, sempre simpático e capaz de fazer todos rirem com suas brincadeiras.

Os Tapuias

Outra figura tradicional interessante eram os Tapuias, também conhecidos como “Cuias”, possivelmente um jeito infantil de tratar tal personagem na região. Representando os indígenas, usavam chapéus de papelão forrado com restimento brilhante, roupas de sacos desfiados e pinturas no rosto. Carregavam também um “bodoque” – uma espécie de arco com duas cordas e com uma bolsa pequena no meio usada para alojar bolotas ou belonhas. Eles corriam pelas ruas, anunciando sua chegada com um apito característico, e a garotada os temia. As crianças só mexiam com eles quando se sentiam seguras, porque ser atingido por suas belotas realmente doía.

Portanto, esses também respondiam com belonhadas aos que com eles interagiam insultando-os e praticando aquela chacota dita anteriormente, que soava como uma espécie de ofensa.

As Negas

A figura mais popular e ainda bastante presente nos carnavais da Serra são as chamadas “negas”. Vestidas com trapos velhos, máscaras, lenços cobrindo a cabeça e o corpo coberto de óleo queimado e carvão.

Ao que parece, essas figuras buscavam representar uma mulher preta. Saíam aos bandos, correndo de um lado para o outro com o objetivo de sujar o maior número de pessoas possível. Porém, é bom que se diga, geramente só respondiam e borravam com os que estavam “mexendo” com elas, com aquele tom de insulto e provocação. Mas a própria ‘Nega’ também tomava a iniciativa de borrar pessoas mais conhecidas ou até mesmo alguém que estivesse na rua, sem ser provocada. Em alguns casos, esse tipo de atitude gerava tensões, pois as pessoas sujadas não ficavam contentes.

Vínculos Históricos

Tais práticas juvenis envolviam uma cultura das fantasias carnavalescas e pegadinhas típicas de brincadeiras de rua, e é o que mais se assemelha com os chamados “entrudos” clasificados pela legislação do período do Império Brasileiro, em especial as posturas municipais. E houve preceitos legais dessas posturas que proibiam tais práticas com penas para quem infrigisse tal regra.

Uma característica desses entrudos de carnaval, que acabaram sendo proibidos por leis em Vitória e Serra, municípios da Região Metropolitana da Capital do Espírito Santo, era lançar água, lama e outras coisas sobre as pessoas na rua como forma de chacota e zombaria. Alguns aceitavam a brincadeira com bom humor, mas outros não, o que levou à restrição legal dessas práticas.

Tensões no tempo presente

Na Serra, no contexto do século XX, o uso do carvão e do óleo queimado, retirado em postos de gazolina e oficinas da região, se tornou o elemento popularizado para usar na ação desse tipo de entrudo que já perdura por anos na Serra e ainda persiste. Não se tem um registro exato de quando começaram a ser praticados e qual a sua origem.

Um dos problemas também mais desconfortantes que ainda ocorre é a falta de controle em relação a pixação de muros e paredes de edificíos públicos e particulares. Uma atitude desse tipo, que já virou até uma tradição nessa época, é fazer marcas de mãos com óleo queimado nas paredes. Isso explica a menção usada por um artista ao fazer seus murais na EEEFM Serra-Sede, no centro da cidade, como está na imagem abaixo.

Esse prédio escolar  originalmente foi a sede da EEEFM João Loyola, e existe pelo menos desde a década de 1930. Esse edifício, frequentemente marcado pelas mãos das negas, certamente acompanhou, ao longo de sua história, toda a trajetória dessas práticas carnavalescas e das brincadeiras de rua juvenis. Muitos desses mesmos jovens educou e, possivelmente, refletiu sobre esse fenômeno popular ao longo da história, nas suas belezas, traços culturais e também em suas tensões.

Detalhe mais aproximado de um dos paineis na EEEFM Serra-Sede – Serra-Centro, ES. 

Alegoria das Três Raças

É possível imaginar que a inteligência popular por trás dessas três figuras carnavalescas tenha integrado, como uma alegoria, as três raças que constituíram o Brasil e a Serra: europeia (mascarado), ameríndia (tapuia) e africana (nega).

A concepção do mito das três raças formadoras da civilização brasileira marcou por anos a cultura e o imaginário na compreensão do Brasil, influenciando de forma significativa o pensamento político, social e científico das elites. Além disso, esse mito também circulou em outros estratos culturais da sociedade, produzindo diversas representações e interpretações.

Essas práticas culturais e de mentalidade precisam ser estudadas como tal, pois, por um lado, expressam um reflexo da diversidade cultural e étnica do país e do município, e, por outro, revelam os conflitos, preconceitos e visões distorcidas das culturas dos povos que moldaram nossa história e identidade.

Referências históricas e para aprofundamento sobre o Entrudo de Carnaval

Se você deseja conhecer mais sobre o Entrudo de Carnaval e sua influência na cultura brasileira, confira as referências e links abaixo. Essas informações adicionais contextualizam o tema do artigo e oferecem caminhos para um aprofundamento.

História do Entrudo

  • O Entrudo no Brasil: Os portugueses trouxeram o Entrudo ao Brasil ainda no Período Colonial, transformando-o em uma prática comum nas ruas e casas durante os dias que antecediam a Quaresma. Dividido costumeiramente em dois tipos — o Entrudo Familiar e o Entrudo Popular —, essa celebração envolvia brincadeiras que iam desde o lançamento de limões de cheiro até guerras com água suja e frutas podres. Essas práticas refletiam a diversidade cultural e étnica do país, mas também geravam conflitos e tensões sociais, levando à gradual substituição do Entrudo pelo Carnaval moderno. Esse tema foi amplamente estudado por grandes autores e folcloristas brasileiros, como Câmara Cascudo.

  • Práticas e Costumes do Entrudo: Os participantes do Entrudo se envolviam em brincadeiras que variavam de moderadas a agressivas. No Entrudo Familiar, as atividades aconteciam dentro das casas, enquanto o Entrudo Popular se destacava pelas brincadeiras nas ruas, muitas vezes envolvendo guerras com água, frutas podres e outros itens.

  • Para saber mais sobre essa história, confira os links abaixo:

Tratamento dessas práticas na Legislação Antiga do Espírito Santo

Ao longo do século XIX, as autoridades começaram a impor restrições ao Entrudo, refletindo as tensões sociais da época. Uma das primeiras grandes proibições ocorreu em 27 de janeiro de 1857, quando o Governo do Espírito Santo proibiu o Entrudo na província. Quem infringisse a lei enfrentava penalidades que variavam de multas a castigos físicos, especialmente para os escravos. Essa medida visava controlar as manifestações populares que, em muitos casos, ultrapassavam os limites do respeito e da convivência harmoniosa.

  • Proibição de 1857: A proibição do Entrudo incluía penalidades como multa de 10$000 ou cinco dias de cadeia. Para os escravos, a pena era de 25 açoites ou duas dúzias de palmatoadas.

No entanto, as restrições ao uso de máscaras (presentes, por exemplo, nos entrudos da Serra mencionados no artigo) e outras práticas foram ainda mais rigorosas, o que provocou reações. Em 1835, a Assembleia Provincial do Espírito Santo sancionou uma lei que proibia o uso de máscaras em toda a província. As multas para os infratores eram de 50.000 réis ou trinta dias de prisão, enquanto os escravos sofriam 400 açoites. Essa lei, contudo, durou apenas nove anos.

  • Lei de 1835 sobre o Uso de Máscaras: Aprovada em toda a Província, essa lei proibia o uso de máscaras, impondo penas severas aos infratores.

Revogação e Nova Legislação

Em 1844, a legislação mudou. Uma nova lei revogou a proibição anterior e voltou a permitir o uso de máscaras e a realização de festas de mastro, desde que as licenças fossem devidamente pagas. Essa mudança refletiu uma flexibilização das autoridades diante das pressões sociais e culturais.

  • Revogação de 1844 e Nova Legislação: A nova lei de 1844 restabeleceu o uso de máscaras e permitiu festas de mastro mediante o pagamento de 6.000 réis ao cofre da municipalidade.

  • Lei nº 35 de 1869: Essa lei incluía receitas para a Câmara de Vereadores, relacionadas às licenças para festejos populares, como o uso de máscaras e o levantamento de mastros. A licença custava 10 réis.

 

Visite o Arquivo da Assembleia Legilativa do Espírito Santo

Segunda a sexta-feira, das 7 às 18 horas
[email protected] - (27) 3382-3864 / 3865

Uma versão desse artigo foi publicado inicialmente no formato impresso com o título “Mexendo com negas, tapuias e mascarados”, no Jornal da Serra-ES, v. 307, p. 4-4, 15 fev. 2013.  

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