Caminhos da Fé Católica: descobrindo a religião, cultura e tradição nas comunidades do Espírito Santo Oitocentista

Evolução dos sacramentos: das dificuldades de tempos passados aos tempos atuais

Este artigo conta um pouco da história da visita do Bispo Dom Pedro Maria de Lacerda da Arquidiocese do Rio de Janeiro à então Província do Espírito Santo. Na época, o território capixaba ainda estava ligado à administração diocesana da Corte (Rio de Janeiro) e já fazia 60 anos que o bispo anterior visitava as paróquias espirito-santenses. Trata-se de uma história muito interessante e, muito do que sabemos, provém de uma fonte histórica valiosa que será revisada aqui: os diários que D. Pedro Maria produziu anotando diariamente as coisas que fazia e os locais por onde passava em sua visita episcopal.

Os católicos atuais e suas famílias, que vivem na comunhão e de forma participante nas comunidades, aprendendo da catequese e buscando os santos Sacramentos, irão entender bem esse artigo. Todavia, temos certeza que é um assunto que deverá interessar a muitos e, de propósito, chamamos a atenção para um ponto que pode aumentar a curiosidade em lê-lo para saber o que essa história pode nos ensinar.

Atualmente, a proximidade do povo congregado (em dioceses, paróquias e comunidades eclesiais de base) aos serviços oferecidos pela Igreja traz muitos benefícios e facilidades. Porém, o que temos hoje em termos sacramentais ofertados aos fiéis é bem distinto do que ocorria nas relações de fé e comunitárias na Igreja em outros tempos, sobretudo em um Brasil e em um Espírito Santo até o século XIX. Naquele contexto, as noções de espaço e tempo, em função das condições da época impactavam completamente as rotinas da educação na fé.     

A Crisma realizada pelo Bispo tinha agenda distinta dos dias atuais

Um dos aspectos mais marcantes da visita episcopal de D. Pedro Maria de Lacerda ao Espírito Santo no final do século XIX foi a organização dos sacramentos, especialmente o da Crisma, tendo em vista que era um serviço basicamente feito pelas mãos do sucessor dos apóstolos, o bispo. No século XIX, a distância entre visitas episcopais e as dificuldades de transporte significavam que sacramentos como a Crisma eram ocasiões raras e grandiosas. O intervalo de mais de 60 anos desde a última visita episcopal no Espírito Santo demonstra como a Igreja dependia de grandes esforços logísticos e da colaboração das comunidades para realizar cerimônias tão significativas.

Hoje, com a expansão e fortalecimento da Igreja, sacramentos como a Crisma tornaram-se mais acessíveis. A Arquidiocese de Vitória conta com a presença constante de bispos e auxiliares, o que possibilita a organização regular de cursos preparatórios e celebrações em intervalos muito menores. Além disso, a melhora nos meios de transporte e comunicação permite que a Igreja esteja mais próxima das comunidades, facilitando a administração não apenas da Crisma, mas também de outros sacramentos como batismos, casamentos e confissões. Tal possibilidade permite que os calendários da catequese e outras atividades tenham previsibilidade e organização mais facilitada.

Essa evolução reflete não apenas o crescimento institucional da Igreja, mas também seu compromisso em atender às necessidades espirituais das comunidades, garantindo que os fiéis possam viver plenamente sua fé católica. Os relatos do Bispo D. Pedro Maria de Lacerda do Rio de Janeiro, que tinha as paróquias do Espírito Santo sob sua circunscrição, nos ajudam a valorizar essa trajetória e reconhecer o impacto transformador da presença religiosa em momentos cruciais da história.

Descobrindo a religião, cultura e tradição nas comunidades do oitocentos

A história do Espírito Santo é repleta de momentos marcantes, mas poucos documentos nos oferecem um vislumbre tão rico como os diários do Bispo D. Pedro Maria de Lacerda. Publicados em uma edição primorosa após a transcrição minuciosa de Maria Clara Medeiros Santos Neves, esses relatos são uma verdadeira janela para o passado, revelando não apenas os detalhes da vida cultural e social, mas também a profunda fé católica que permeava as comunidades do final do século XIX.

D. Pedro Maria de Lacerda foi bispo do Rio de Janeiro entre 1868 e 1888. Confirmado décimo bispo do Rio de Janeiro pelo Papa Pio IX em bula de 24 de setembro de 1868, e entrou solenemente na Catedral do Rio de Janeiro em 1° de março de 1869. Teve a função episcopal por mais de 20 anos. Conferir mais detalhes AQUI e também aspectos mais detalhados de sua BIOGRAFIA AQUI.

Os diários documentam duas viagens pastorais realizadas por D. Pedro: uma em 1880 e outra entre 1886-1887. Neste artigo, focaremos na primeira viagem, que percorreu a região central do Espírito Santo, passando por localidades como Serra, São José do Queimado, Nova Almeida, Fundão, Santa Cruz, Santa Rosa e Cachoeirinho. Em quatro meses, entre 14 de julho e 11 de novembro de 1880, o bispo não apenas visitou comunidades, mas mergulhou em suas vidas, costumes e desafios, fortalecendo a devoção católica e inspirando gerações.

Mapa da região visitada por D. Pedro Maria de Lacerda com a indicação do itinerário da Visita Episcopal:

Fonte: Diários das Visitas Pastorais de D. Pedro Maria de Lacerda e Google Maps.

Conferir mais detalhes sobre esta belíssima e densa publicação clicando AQUI ou na própria imagem do livro.

Uma chegada celebrada com devoção e festividades

Naquele período, o Espírito Santo pertencia à Arquidiocese do Rio de Janeiro e já fazia mais de 60 anos desde a última visita episcopal. Por isso, a chegada de D. Pedro Maria de Lacerda foi recebida com grande entusiasmo. As comunidades se preparavam com fogos de artifício, bandas de música, irmandades religiosas e crianças espalhando pétalas de flores. Indígenas se juntavam aos festejos com seus instrumentos tradicionais, como tambores e chocalhos, enquanto os moradores se reuniam para saudar o bispo, seja em embarcações pelos rios ou em cavalarias nas estradas.

A emoção também marcava as despedidas, com multidões buscando se despedir do bispo, muitas vezes entre lágrimas e expressões de gratidão. Esses momentos solenes foram registrados com sensibilidade pelas palavras de D. Pedro Maria de Lacerda, evidenciando a forte ligação entre a fé católica e o cotidiano dessas comunidades.

A missão do bispo: trabalho e dedicação pela fé

A rotina do arcebispo era intensa e movida pela fé. Ele celebrava missas, realizava crismas, batismos, casamentos e outras cerimônias religiosas. Na Serra, por exemplo, ele crismou 2.534 pessoas, um número impressionante considerando que o recenseamento de 1872 registrava 4.294 habitantes no município. Esses sacramentos não eram apenas ritos, mas momentos de reafirmação da fé católica e da identidade religiosa da comunidade.

Além disso, ele dedicava tempo aàs relações pastorais, resolvendo problemas locais, promovendo obras de caridade e aprendendo sobre a cultura e história dos lugares visitados. Sua preocupação com os costumes locais também era evidente. Ele incentivava os índios a valorizarem sua língua e tradições, mas condenava a associação de festas religiosas ao consumo excessivo de álcool, reforçando a importância da moralidade cristã.

Um relato que une religião, história e devoção

Os diários de D. Pedro oferecem uma visão multifacetada da vida no Espírito Santo do século XIX. Entre os registros, destacam-se:

Casos e anotações feitas pelo Bispo D. Pedro de Lacerda na então cidade da Serra

Os diários de D. Pedro oferecem relatos ricos e detalhados sobre a experiência que ele teve na sua passagem pela Serra. Ele registrou o que ele viu, como foi sua recepção e também os desafios do percurso. Até as manifestações culturais e religiosas da época ele anotou, indicando as irmandades que existiam na Matriz de Nossa Senhora da Conceição da Serra, bem como os traços da devoção que havia na população. Nesta cidade, ficou hospedado na casa do Major Antônio Pinto Loureiro (“homem dos mais ricos daqui”, escreveu o Bispo).

Seguem alguns casos que listamos abaixo como destaque, mas antes leia um trecho muito interessante de como foi a sua chegada na Serra:

“Desde o sítio das Laranjeiras mais crescia o numeroso concurso dos cavaleiros que nos vinham ao encontro, concurso grandemente reforçado no sítio do Campinho. Em algumas e suaves ladeiras lancei as vistas para trás, e era belo ver aquela extensa linha de mais de 200 cavaleiros que se estendia pela estrada sobretudo nos lugares mais apertados e na passagem de alguns pequenos pontilhões. E tudo vinha às carreiras e todos traziam a alegria es­tampada na face. Aproximando-nos da Cidade, pelas casas e choupanas havia gente às janelas e portas e soltavam alegres foguetes do ar, e estes fo­ram amiudando-se e sendo correspondidos pelos festivos repiques dos sinos da Matriz. À entrada da Cidade apeei-me e todo aquele numeroso séquito de mais de 200 pessoas. Ali estava mui decentemente preparada uma casa térrea, tendo na sala o Altar com luzes e o Crucifixo, uma cadeira coberta de damasco e com seu dossel, e tapete com almofada para eu ajoelhar-me, e o Pálio etc. À entrada da casa estava postada uma banda de música e algumas praças com suas espingardas, e um grande número de meninas com cestinhas e salvas de flores. Pelas janelas das vizinhas casas térreas muitas senhoras à janela, e o que me fez impressão aqui, com chapelinhos de sol abertos para se abrigarem do sol. Pelas portas e ruas muita gente, homens, mulheres e meninos. Ao apear-me senti certa impressão de belo, grandioso e solene e no coração senti alvoroços de alegria, quando rompeu a música e ao apear-me todas aquelas meninas me cobriram com um chuveiro de flores. As praças de polícia apresentaram armas.”

  • Chegada à Serra: A viagem de Vitória à Serra levou 3 horas e 30 minutos, realizada em “ótimos e rápidos cavalos (…) de marcha veloz”. Durante o percurso, ele se encantou com as paisagens, como a “elevada serra do Mestre Alves [sic], povoadíssima e cultivada”. (p. 51)
  • Recepção Festiva: Ao se aproximar da Serra, centenas de cavaleiros se juntaram ao cortejo. “Era belo ver aquela extensa linha de mais de 200 cavaleiros (…) tudo vinha às carreiras e todos traziam a alegria estampada na face”. A entrada na cidade foi marcada por repiques de sinos, foguetes e chuvas de flores, acompanhadas por bandas de música e muita emoção. (p. 51-52)
  • Vida Religiosa e Social: Há 68 anos um bispo não visitava a região. D. Pedro destacou que o povo da Serra era “talvez o mais religioso da Província”. Ele realizou missas lotadas, muitas ao ar livre devido à pequena capacidade da Igreja Matriz, além de confissões, comunhões, casamentos e crismas. (p. 53)
  • Conflitos e Reconciliações: Diversos casais amancebados procuraram regularizar sua situação, e casos complexos de casamento, como famílias que se opunham a uniões, também foram tratados pelo bispo. Em um caso, uma jovem apaixonada fugiu para se casar contra a vontade da família. (p. 68)
  • Maçonaria e Religião: O bispo relatou a presença de poucos maçons na região e mencionou um homem arrependido, que clamava por perdão por sua associação com a maçonaria. (p. 68-69)
  • Festejos Religiosos: Batismos eram ocasiões festivas, marcadas por foguetes, repiques de sinos e até bandas de música. Uma procissão incluiu todas as imagens da igreja, irmandades e uma banda, atravessando ruas enfeitadas e com lama devido à chuva. Mais de 3 mil pessoas participaram do primeiro Pontifical celebrado na Serra. Havia na Paróquia três Irmandades que foram anotadas pelo Bispo: a Irmandade de São Benedito, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a Irmandade do Santíssimo Sacramento. (p. 71-72)
  • Um Pedido Inusitado: Uma “escrava”mulata cativa” perguntou ao bispo se poderia se tornar freira. Ele reconheceu sua seriedade e bons sentimentos, mas explicou que não poderia atendê-la. (p. 78-79)

O legado de uma fé viva

Os diários de D. Pedro são um testemunho da fé católica que sustentava as comunidades do Espírito Santo. Em um tempo de poucos recursos e muitas adversidades, essas comunidades encontraram na religião uma fonte de esperança, unidade e força para superar os desafios do cotidiano.

Os desafios entre as normas da Igreja e os costumes locais são uma lição atemporal sobre tolerância e adaptação. Se por um lado o bispo condenava práticas como a mancebia e a maçonaria, por outro ele reconhecia a necessidade de respeitar e valorizar aspectos culturais, reafirmando a fé como elemento central de união e transformação social.

Conclusão: a fé que transcende o tempo

Ao revisitar os diários de D. Pedro Maria de Lacerda, percebemos que eles não apenas documentam uma viagem episcopal, mas também capturam a essência de um povo e de sua devoção católica. Hoje, esses relatos continuam a inspirar e nos convidam a refletir sobre nossa própria relação com a história, a cultura e a espiritualidade, mostrando como a fé pode ser um ponto de apoio e iluminação em qualquer época.


Uma versão desse artigo foi publicada originalmente na Revista Zênite – publicação que circulou na Serra e no Espírito Santo nas décadas de 1990 e 2000.

Conferir em: COSTA, M. D. C.. Visita episcopal à Província do Espírito Santo em 1880. Entre festas de devoção, trabalhos e revelações de um outro Espírito Santo. Zênite, Espírito Santo, p. 20 - 20, 01 dez. 2012.

Sobre o autor:

Michel Dal Col Costa é doutor em História com concentração em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO. Mestre em História com concentração em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo/UFES, onde também bacharelou-se e licenciou-se em História. Recentemente especializou-se na área pedagógica em coordenação pedagógica pela Faculdade IBRA. É do quadro do magistério efetivo da rede estadual do Espírito Santo, atuando como professor e outros cargos na área de conhecimento durante muitos anos, posteriormente acessou ao quadro técnico pedagógico da SEDU-ES, Unidade Central, atuando na equipe do Centro de Formação dos Profissionais do Magistério (CEFOPE), e, em seguida, na equipe técnico-pedagógica da Assessoria Especial de Educação em Tempo Integral/Subsecretaria de Educação Básica-SEEB. Atualmente é supervisor escolar na Superintendência Regional – SRE Carapina. É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo/IHGES e da Academia de Letras e Artes da Serra-ES/ALEAS e tem desenvolvido trabalhos de pesquisa e publicação com pareceiros e por empreenderismo pessoal.

Conferir o currículo completo do autor na Plataforma Lattes clicando AQUI.

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